Alegorias Bíblicas



I. Noção e Espécies.

II. Coletâneas de interpretações alegóricas.

I. NOÇÃO E ESPÉCIES.

Há, na Bíblia, alegorias de duas sortes:

1° Encontram-se nela alegorias no sentido clássico da palavra, figuras de retórica pelas quais os escritores sagrados dizem uma coisa para dar a entender outra, metáforas continuadas ou desenvolvidas. A imagem incide, não apenas sobre uma palavra, como na simples metáfora, mas sobre uma frase inteira (Mateus, V, 13; Lucas, III, 9), sobre várias frases, como nas alegorias da vinha (Salmo LXXIX, 9-18; Isaías, V, 1-6), e mesmo sobre todo um livro, tal como o Cântico dos Cânticos que, no sentir da maioria dos intérpretes católicos, não é senão uma longa alegoria. São Gregório Magno, Super Cantica Canticorum, proem., n. 2 e 3, P. L., t. LXXIX, col. 473; Ricardo de São Vitor, In Cantic. Cantic., prol., P. L., t. CXCVI, col. 405. As palavras da alegoria não devem ser tomadas em sua significação própria e ordinária, mas num sentido metafórico que é o verdadeiro sentido querido pelo escritor. Os Padres sempre reconheceram na Bíblia essas alegorias que definiram com Quintiliano (Inst. orat., VIII, 6) como tropos oratórios. Santo Agostinho, Enarrat. in Ps. CIII, n. 13, P. L., t. XXXVII, col. 1347; De Trinitate, l. XV, 13, P. L., t. XLII, col. 1068; Cassiodoro, Expositio in Ps. XXXII,13, P. L., t. LXX, col. 223; Haposit. in Ps. XCIX, 1, ibid., col. 698; Junílio, De partibus divine legis, l, 5, P. L., t. LXVIII, col. 18-19.

2° Mas há, na Escritura, alegorias de outra sorte que não as dos retóricos; elas são exclusivamente próprias aos Livros santos. Seu nome lhes vem de São Paulo, que disse da história de Isaac e Ismael: Ἅτινά ἐστιν ἀλληγορούμενα, «estas coisas são ditas por alegoria» (Gálatas, IV, 24). O apóstolo chama alegoria, não os dois filhos de Abraão, mas sim a significação espiritual e mística de sua história. Patrizi, Institutio de interpretatione Bibliorum, Roma, 1876, p. 170; Cornely, Comment. in epist. ad Cor. alteram et ad Galatas, Paris, 1892, p. 548. Já São Crisóstomo, In Gal., IV, 24, n. 3, P. G., t. LXI, col. 662, havia observado que São Paulo empregava a palavra alegoria, καταχρηστικῶς, «por catacrese», fora do sentido ordinário. A alegoria especialmente bíblica tem, de fato, alguma analogia com a alegoria dos retóricos; como ela, diz outra coisa que o que as palavras expressam: Ἄλλο μὲν ἀγορεύει, ἄλλο δὲ νοεῖ, e, segundo Suídas: Ἄλλο λέγον τὸ γράμμα, καὶ ἄλλο τὸ νόημα." Cf. Mário Vitorino, Im epist. Pauli ad Gal., IV, 24, P. L., t. VIII, col. 1185; Cassiano, Collat., XIV, 8, P. L., t. XLIX, col. 963-964; Guibert de Nogent, Comment. in Genesim, l, P. L., t. CLVI, col. 25-26. Ela difere, entretanto, em que o sentido alegórico não resulta imediatamente das palavras que formam a imagem, mas da coisa expressa literalmente pelas palavras, non in verbis, sed in facto. Santo Agostinho, De Trinitate, l. XV, IX, 15, P. L., t. XLII, col. 1068. Deus, de fato, preordenou certos eventos da história judaica — o envio de Agar e Ismael (Gálatas, IV, 30, 31); a passagem do Mar Vermelho (I Coríntios, X, 1); certas instituições, como as vítimas e as cerimônias do culto judaico (Hebreus, XI, 9); os dias de festa (Colossenses, II, 16, 17); certos personagens, como Adão (Romanos, v, 14); Melquisedeque (Hebreus, VII), etc. — a representar, além de sua realidade histórica, eventos, instituições ou personagens futuros da nova aliança. Sob o sentido literal do relato bíblico, esconde-se outro sentido, o sentido alegórico, que prefigura e anuncia o futuro; a narração diz outra coisa que o que os termos significam. São Tomás, Sum. theol., I, q. XIX, a. 10. Entre a alegoria bíblica e o futuro que ela prediz, há sempre uma certa semelhança, Santo Agostinho, Enarrat. in Ps. VIII, n. 13, P. L., t. XXXVI, col. 116; e, segundo os diversos pontos de semelhança que pode oferecer, um único e mesmo fato da história judaica, um único e mesmo objeto, um único e mesmo personagem, pode representar vários eventos, objetos e personagens do futuro. Santo Agostinho, Serm., XXXII, 6, P. L., t. XXXVIII, col. 198; Serm., LXXIII, 2, ibid., col. 471. Cf. Cornely, Introductio generalis, 2ª ed., Paris, 1894, p. 555-556.

Os Padres pesquisaram com mais ou menos predileção o sentido alegórico da Escritura. A carta atribuída a São Barnabé, os escritos de São Clemente de Roma, de São Justino, de Santo Irineu e de Tertuliano, já contêm numerosas interpretações alegóricas. A escola exegética de Alexandria excedeu nesse caminho e viu alegorias em quase todas as passagens da Bíblia. Seus membros tomavam por alegorias, não somente as metáforas da Escritura, mas também certas explicações mais profundas que encontravam sob a letra e que preferiam ao sentido literal.

A escola de Antioquia, os Padres capadócios e, em geral, os escritores da Igreja latina, mantiveram-se dentro de limites mais estreitos. Rejeitaram o abuso das alegorizações. São Basílio, Hom., IX, in Hexani., n. 1, P. G., t. XXIX, col. 188; São Jerônimo, Comment. mm Amos, IV; P. L., t. XXV, col. 1028; Santo Agostinho, De civitate Dei, XVII, 3, P. L.; t. XLI, col. 525-526. Mas vários dentre eles compreenderam sob o nome geral de alegoria toda significação mística, todos os sentidos espirituais da Escritura. Santo Agostinho, De utilitate credendi, III, 5, P. L., t. XLII, col. 68; De vera religione, 50, t. XXXIV, col. 166.

Entretanto, o uso restringiu pouco a pouco a alegoria bíblica a ser apenas uma espécie particular do sentido espiritual, aquela do sentido típico ou profético. Buscou-se encontrar sua significação precisa em Santo Agostinho, De Genesi ad litteram, I, n. 1-2, PL, t. XXXIV, col. 247. Ela é nitidamente formulada por Cassiano, Collat., XIV, 8, P. L., t. XLIX, col. 963, em oposição ao sentido anagógico e tropológico. É repetida por Rabano Mauro, Allegoriae in sac. Script., P.L., t. CXII, col. 849, e foi consagrada pelos escolásticos. São Tomás, Quodlibet, VIII, q. VI, a. 16. Relacionada primeiramente à fé em geral, allegoricus, quid credas (docet), foi categoricamente aplicada por São Tomás à prefiguração de Jesus Cristo e da Igreja no Antigo Testamento. Cornely, Introduetio generalis, 1894, p. 537-539.

Disso resulta que certos intérpretes negam com Patrizi (Institutio de interpretatione Bibliorum, Roma, 1876, p. 199-203) a existência do sentido alegórico no Novo Testamento. Outros, porém, reconhecem nele alegorias concernentes, senão ao Messias já vindo, ao menos ao futuro de sua Igreja. Ubaldi, Introductio in sac. Script., Roma, 1881, t. III, p. 100-105; F. Schmid, De inspirationis Bibliorum vi et ratione, Brixen, 1885, n. 196-218; Cornely, Introd. gen., 1894, p. 562-564. Deve-se admitir como certas as alegorias do Antigo Testamento que são indicadas em pequeno número no Novo.

Todas as interpretações alegóricas dos Padres não se impõem igualmente ao nosso assentimento. Somente aquelas que apresentam as características da tradição devem ser aceitas. Ora, é preciso que sejam propostas sem nenhuma contestação e como um ensinamento recebido na Igreja. Os sentidos alegóricos que o estudo fez os Padres descobrirem na Sagrada Escritura não têm mais a autoridade das testemunhas da tradição; seu valor é proporcional à ciência pessoal desses doutores particulares e à analogia mais ou menos perfeita que têm com a letra. São, portanto, mais ou menos prováveis, dependendo dos casos. O mesmo se aplica, e a fortiori, às interpretações alegóricas dos comentaristas da Bíblia; elas podem ser discutidas e mesmo rejeitadas, se não forem fundadas.

II. COLETÂNEAS DE INTERPRETAÇÕES ALEGÓRICAS

Cedo se reuniram, em ordem alfabética, as alegorias do Antigo e do Novo Testamento. Esses dicionários, mais ou menos extensos, reproduzem as interpretações alegóricas da Escritura, sem indicar sua fonte e, consequentemente, seu valor. São repertórios, onde os elementos são de autoridade desigual e teriam necessidade de ser criteriosamente triados. Limitemo-nos a mencionar La Clavis, atribuída a São Melitão e publicada por Pitra, Spicilegium Solesmense, Paris, 1855, t. II, III, pp. 1-308; Analecta sacra, Frascati, 1884, t. II, pp. 1-127, 585-623. É uma compilação anônima que é, na sua maior parte, do século V, pois aí se encontram empréstimos a Santo Agostinho e talvez a Santo Eusébio. Ainda se pode mencionar S. Eucher, Formularum spiritalis intelligentiae liber unus, P. L., t. I, col. 727-772, e depois Analecta sacra, t. II, p. 484-513. S. Isidoro de Sevilha, Allegoriae quaedam sacrae Scripturae, P. L., t. LXXXIII, col. 97-130; Raban Mauro, Allegoriae in universam sacram Scripturam, P. L., t. CXII, col. 849-1088. Hugo de São Vítor, Allegoriae in Vetus et in Novum Testamentum, P. L., t. CLXXV, col. 633-924. Garnerus, Gregorianum (extratos das obras de São Gregório Magno), P. L., t. CXCIII, col. 23-462. Guilherme, judeu convertido do século XIII, Allegoriae de principio et fine cujuslibet libri Veteris et Novi Testamenti; cf. Hurter, Nomenclator literarius, t. IV, 1899, col. 207-208. Barthélemy de Glanville, Allegoriae in tropologiae in utrumque Testamentum, Paris, 1574. Antoine Belengati, Figurae totius Bibliae; Jean Jacques Dufour, Speculum morale totius sacrae Scripturae, in quo universa ferme loca Veteris et Novi Testamenti, mystice explanantur, in-4º, Lyon, 1513, 1563; Veneza, 1594, 1600, 1603. Odon Gérard, Ex libris bibliothecae fratrum minorum Mirapicensium. Antoine de Rampegon, Figurae biblicae, obra publicada sob diversos títulos. Cf. Hurter, Nomenclator, t. IV, col. 615-616 Jean Grave, De figuris bibliorum. Pierre de Ravenne, Allegoriae et tropologiae locos utriusque Testamenti. in-8, Paris, 1574 Othmar Luscinus (Nachtigal), Allegoriae Psalmorum Davids prophetae, Augusta, 1524. Allegoriae simul et tropologiae in locos utriusque Testamenti selectiores, in-8º, Parisiis, 1550, 1574. Jerome Lauret, Silva seu hortus floridus allegoriarum totius sacrae Scripturae, in-fol., Barcelona, 1570; Veneza, 1575, 2 in 4, 1587; Paris, 1584; Colônia, 1701. François d’Avila, Figurae bibliorum Veteris Testamenti quibus Novis veritas praedicatur et adumbratur, 1574. Jean de Paiva, Doctrinale Sacrae Scripturae, in-fol., Coimbra, 1631.

Pode-se acrescentar os Indices XLVI–XLIX, da Patrologie latine de Migne, t. CCXIX, col. 123–264, relativos às alegorias e às figuras do Antigo e do Novo Testamento. Cf. Le Long, Bibliotheca sacra, Paris, 1723, t. II, p. 1045; Pitra, Spicilegium Solesmense, Paris, 1855, t. II, p. LXXXI–LXXXVI.

E. MANGENOT.